23
de Maio.
À tarde de 23 de maio,
data que se eternizaria na história paulista, a cidade regurgitou novamente.
Homens e mulheres, famílias inteiras acotovelavam-se nas ruas centrais,
enquanto outras replenavam as sacadas dos prédios convizinhos. Aqui e ali,
discursos em improvisados comícios. Eram bandeiras que se desfraldavam, eram
clamores uníssonos; eram aclamações ruidosas. Tudo sem rumo, sem organização,
sem destino. Até que, a tantas, a multidão se deslocou pelo Viaduto do Chá. Mas
ela era muita – e ainda muito mais gente veio replenar a Praça do Patriarca.
Falou-se em oitenta, cem mil pessoas...
O certo é que daí a
pouco, já todos sabiam que o povo se destinava ao Palácio dos Campos Elísios,
onde ocorriam as negociações: Morato, em nome da Frente Única, apresentava a Pedro
de Toledo a lista dos novos secretários. De passagem pela rua Conselheiro
Crispiniano, novas manifestações de confraternização verificavam-se em frente
ao Quartel General do Exército. E o cortejo prosseguiu até a residência que
fora de Elias Chaves. Os portões estavam fechados. Quando soube do que se
passava, Pedro de Toledo determinou que se franqueasse ao povo a entrada nos
jardins circundantes da casa do governo.
O povo mandava dizer ao
Interventor que desejava saber em que pé estavam as negociações. Altino
Arantes, entre aclamações, informava que, dentro de alguns instantes, seria
anunciado o novo secretariado. Carregado por admiradores, chega Ibrahim Nobre,
cuja ausência dera lugar à suspeita de ciladas.
Assim, já os relógios
marcavam 19 horas quando Morato assomou à sacada para anunciar a composição do
novo secretariado: Waldemar Ferreira, para a pasta da Justiça; Rodrigues Alves
Sobrinho, Educação e Saúde; Fonseca Teles, Viação; Francisco Junqueira,
Agricultura; Armando de Salles Oliveira, Fazenda; Joaquim Sampaio Vidal,
Departamento das Municipalidades; Godofredo da Silva Telles, Prefeitura da
Capital.
Aplausos e aclamações
quase impediam que se ouvissem os nomes proclamados. Mas o povo vibrava e
reclamava posse imediata aos novos secretários. Ninguém mais podia confiar nas
autoridades federais, pois, a qualquer momento, poderiam urdir ciladas ou
promover violências. Ademais, cumpria assegurar a vitória. Pedro de Toledo
acede, contanto que o primeiro empossado fosse, como era norma, o secretário da
Justiça. Afinal, presente o secretário Silva Gordo, a quem caberia transmitir o
cargo, resolveu-se que o ato se realizaria na sede da secretaria da Justiça, no
largo hoje chamado de Pátio do Colégio. A comunicação ao povo foi feita por
Morato que termina com estas palavras: -
O Estado de São Paulo reafirma na data redentora de hoje o gênio e ânimo
invicto dos filhos de Piratininga. E convidou os presentes para a
solenidade.
Na
cidade, em polvorosa.
À hora marcada já a
multidão se deslocara do Campos Elísios para a cidade e desbordava dos
arredores da secretaria, para as ruas adjacentes, com entusiasmo cada vez
maior. Havia certa demora na realização da posse: é que o novo e o antigo
secretários não estavam presentes ainda. Quando Waldemar Ferreira apontou, o
povo abriu-lhe alas para que ele caminhasse avante, com dificuldade, é certo,
mas sobranceiro e risonho, agradecendo comovido as manifestações que recebia.
Lá dentro, Silva Gordo
assinava os decretos de reforma do General Miguel Costa e do Coronel Juvenal de
Campos Castro. E ainda se delongava a cerimônia, porque Silva Gordo não sabia
como se apresentar. E, ao que se refere uma testemunha, ele caminhou até a sala
da solenidade aos empurrões e apupos, “como nenhum homem público ou privado
jamais fora desprestigiado na praça pública”. Silva Gordo conteve-se, tendo
dito palavras altas a Waldemar Ferreira, cuja resposta mal se pode ouvir, tal o
alarido das aclamações de vitória. A seu antecessor chamou-o honrado e operoso.
Após o ato oficial,
surgiu o problema da defesa da pessoa do ex-secretário. Organizou-se uma
escolta de alto nível que o conduziu por entre o povo até um prédio próximo,
onde o abrigaram até mais tarde, quando, julgado serenada a ira popular, foram
busca-lo para conduzi-lo a sua residência, onde chegou com alguns arranhões.
Nesta última diligência, foi preciso que Ibrahim Nobre enfrentasse e bradasse
em tom imperioso a um magote que pretendeu arrebatar-lhe o prisioneiro.
A Força Pública estava
de prontidão, podendo dar-se a qualquer hora um choque fatal com o grupo
miguelista. O primeiro ato de Waldemar Ferreira foi nomear o Tenente Júlio
Marcondes Salgado comandante interino da milícia. Dois dias depois, era
efetivado no comando da Força.
A posse do novo
comandante da milícia estadual encontrou certa resistência. O Coronel Herculano
de Carvalho pretendia que Miguel Costa assumisse o cargo. O Coronel Joviniano
Brandão pretendeu também o comando. A presença de Waldemar Ferreira, calmo e
seguro, desfez o equívoco: Marcondes Salgado foi empossado e os oficiais
conjurados voltaram à tropa.
Mas o novo secretário
ainda não podia saber que o Major Cordeiro de Farias, ainda chefe de polícia,
retirara o policiamento das ruas, limitando-se à defesa de seus
correligionários ameaçados...A cidade estava entregue aos manifestantes, cuja
ação poderia ultrapassar limites de prudência. A ação de vários próceres
impediu que os mais exaltados cometessem desatinos. Não obstante, a massa popular permanecia nas
ruas centrais, ameaçadora e violenta. Cerca de 23 horas, não houve conte-los:
empastelaram a redação dos jornais A Razão e Correio da Tarde, ateando
fogueiras com papeis e móveis e outros materiais jogados pelas janelas.
Logo mais, outro grupo
numeroso atravessa o Viaduto do Chá, rumo à Praça da República, para onde deita
janelas o prédio nº 70 da Rua Barão de Itapetininga. Era a sede da Legião
Revolucionária, havia pouco rotulada de Partido Popular Paulista, “considerado
a máquina extremista opressora de São Paulo”. Em chegando até lá a massa do
povo, pois o grupo se fora acrescendo no percurso, ouviram-se tiros. O povo não
recuou: improvisou barricadas, fazendo parar para esse fim um bonde da Light.
Um grupo partiu célere em busca de recursos, assaltando casas de armas no Largo
de São Bento, nas ruas Libero Badaró e Boa Vista. Armados e municiados, os
moços atiravam contra os adversários. Havia feridos nas calçadas, enquanto
crescia o número dos atacantes. Explodiam granadas de mão, mais ruidosas que os
tiros. Apagavam-se todas as luzes. Surgiam escadas. O estudante Mario Martins
de Almeida subiu por uma delas e já ia alcançando o andar onde se alojavam os
adversários, quando, atingido em cheio, caiu e se estatelou na calçada, morto.
Outros tombavam – e os estudantes de medicina os socorriam. Um segundo grupo,
munido de latas e garrafas de gasolina, procurava incendiar o reduto que resistia.
Bombeiros e policiais compareceram, mas foram dispensados. A fuzilaria
prosseguia. Os legionários dispunham de fuzis e metralhadoras da Força Pública
e se encontravam em posição vantajosa.
O Tenente-Coronel
Salgado entrou logo em ação, mandando uma força policial para o local, o mesmo
fazendo a II Região Militar. Estabeleceu-se o cerco da quadra. Ao amanhecer do
dia 24, os legionários se rendera ao 4º B.C., porque “mais de onze famílias se
encontravam nos andares superiores do prédio ameaçado de incêndio pelos
atacantes” ...
O tiroteio prosseguia
ainda na Praça da República quando, das 3 às 5 horas da madrugada, Waldemar
Ferreira, chamado com urgência, conferenciava com Oswaldo Aranha no Quartel
General da II Região Militar.
O dia 24 de maio foi um
dia triste. Depois daquela noite trágica, quem teria ânimo para o que quer que
fosse? Os jornais tardaram a circular. E traziam apelos de paz e concórdia. O
Coronel Ávila Lins, comandante interino da II Região Militar, pedia calma ao
povo. A Associação Comercial dava por concluído o protesto da classe, que
fechara seus estabelecimentos. Pelo meio dia, tomaram posse as novas
autoridades. Armando de Salles Oliveira não aceitara a secretaria da Fazenda,
porque presidia à Empresa S.A. Estado de São Paulo.
Em toda parte, luto e
dor. Já se contavam três mortes: Martins, Miragaia, Camargo, todos de 21 anos.
O primeiro, Mario Martins de Almeida estudante de Direito; o segundo, Antonio
Américo de Camargo Andrade, casado, com três filhos menores; e Euclides
Miragaia, estudante em São José dos Campos, onde foi sepultado à tarde, em meio
de pungentes demonstrações de pesar da população toda da cidade. Em São Paulo,
o sepultamento de Mario Martins de Almeida, realizado à tarde, na Consolação,
constituiu nova demonstração do estado de espírito popular. Milhares de pessoas
de todas as classes sociais acompanharam o féretro conduzido a mão por entre
alas respeitosas e silenciosas. À passagem pelo lugar em que Mario Martins
tombou, os soldados que montavam guarda ao prédio do P.P.P., prestaram a devida
continência à bandeira nacional. Do portão à capela do cemitério, alas de senhoras,
senhoritas e populares jogavam flores sobre a urna funerária. Ibrahim Nobre,
estudantes proferiu o discurso de despedida.
Os hospitais da cidade
receberam dezenas de feridos, a bala, identificados como trabalhadores das mais
diferentes categorias: um advogado, um copeiro, um açougueiro, estudantes,
comerciários, industriários das mais diversas especializações, o que é uma
amostra da universalidade dos anseios populares de defesa dos brios de São
Paulo. Até então, eram três os mortos. Dentre os recolhidos com vida, porém,
mais dois sucumbiriam: Dráusio Marcondes de Souza, a 28 de maio, e, dias depois
Amadeu Martins, elevando-se a cinco o número que tombaram heroicamente.
Editado
e publicado por Maria Helena de Toledo Silveira Melo.
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