EMBORA DESARMADOS E TOLHIDOS OS GAÚCHOS ESTIVERAM COM SÃO PAULO.
O Povo rio-grandense não traiu os paulistas, foi traído pelo seu próprio Governador.
Hugo Penteado Teixeira.
A Revolução Constitucionalista – essa demonstração épica de bravura, do civismo, de heroicidade do povo paulista e de sua magnifica formação jurídica- empolgou todo o Brasil. Principalmente no Rio Grande do Sul, a Revolução de 32 repercutiu intensamente, empolgando a maioria do povo gaúcho que, durante aqueles quase três meses de luta, sempre esteve ao lado de São Paulo. Desarmado, perseguido, sem poder agir, os gaúchos viram-se constrangidos a somente acompanhar com simpatia a epopeia paulista. Disso o repórter foi testemunha.
A PRIMEIRA NOTÍCIA.
Era domingo, dia 10 de julho de 1932, quando, em nossa residência, na longínqua cidade gaúcha de Santana do Livramento, fomos informados por um casal amigo que nos visitava, de que eclodira um movimento revolucionário em São Paulo. Mal a visita retirou-se, corremos à redação do semanário local – “A Cidade”. No “placard” estavam afixados os últimos telegramas sobre os acontecimentos ocorridos em São Paulo, que o povo lia surpreso e mesmo comovido. E lá estava, também, o manifesto assinado pelo General Flores da Cunha, então Governador do Estado do Rio Grande do Sul, escrito de forma ambígua, denunciadora de um drama íntimo de consciência, no qual confirmava a deflagração do movimento revolucionário de 9 de julho, com a participação do governo e do povo paulista. Nesse manifesto o General Flores da Cunha, com artifícios de linguagem, tentava explicar ao povo gaúcho os motivos que o levavam a não cumprir seus compromissos com o governo de São Paulo, que eram no sentido de solidarizar-se com o movimento revolucionário. Mas na realidade, não explicava coisa alguma. Percebia-se, nas entrelinhas, que o seu próprio subconsciente o apontava como traidor. Realmente, era a primeira traição sofrida pela Revolução Constitucionalista. São Paulo acabava de ser apunhalado pelas costas. Flores da Cunha, ao invés de marchar para as fronteiras paulistas como aliado, que fora até a véspera, mobilizava tropas para combater a Revolução. Todavia, se o governador do Rio Grande do Sul preferiu a traição, em lugar de honrar a palavra empenhada em compromisso solene, a brava gente gaúcha procedeu de conformidade com as suas tradições de cavalheirismo, lealdade e pundonor. Pode-se afirmar que, desde o primeiro instante, dois terços, no mínimo, da população civil sul-rio-grandense colocou-se ao lado dos paulistas e que, durante três meses, profundamente emocionada, tomada quase de desespero por não poder fazer coisa alguma, à vista de encontrar-se desarmada e rigorosamente vigiada pela polícia ditatorial, acompanhou com imensa simpatia o desenvolvimento da epopeia paulista.
SOLIDARIEDADE GAÚCHA.
Quando se comemora o Jubileu da Revolução de 9 de Julho de 1932, é necessário que se diga, a bem da verdade, que o povo gaúcho não traiu São Paulo. Ele também foi traído pelo seu próprio Governador. Insatisfeito com o embarque a toda pressa da Brigada Militar Estadual para combater a revolução que acabava de deflagrar, o Sr. Flores da Cunha determinou drásticas providências no sentido de impedir que o povo gaúcho se inteirasse do que ocorria em São Paulo. Estabeleceu rigorosa censura à imprensa. Como as emissoras paulistas, principalmente através da voz de Cesar Ladeira, bombardeavam o Brasil inteiro, informando aos brasileiros tudo o que se passava em São Paulo, a polícia gaúcha tratou de aprender discricionariamente, todos os aparelhos de rádio. Em Santana do Livramento, as residências particulares eram invadidas pela polícia ditatorial e os aparelhos de rádio apreendidos sumaria e violentamente. Mas, Santana do Livramento liga-se com a cidade uruguaia de Riviera, sem nenhuma solução de continuidade, apenas separadas por uma avenida mais ou menos da largura da nossa Avenida Ipiranga. Disso se prevalecia o povo santanense, ansioso por notícias, que atravessava a fronteira e ia ouvir rádio em Riviera.
O repórter recorda-se de uma noite, no interior de uma livraria daquela cidade Uruguaiana, enquanto, na rua, o minuano soprava gélido e terrível, um grupo de pessoas ouvia uma rádio emissora bandeirante. Civis e numerosos oficiais do Exército Brasileiro, que serviam no 2º G.A.C. e no 7º R.C.I., aquartelados em Santana do Livramento, não perdiam uma palavra sequer do noticiário radiofônico. Era logo aos primeiros dias da revolução. Quando chegamos ao local, o rádio transmitia o discurso de uma senhora, cuja voz, que tivemos a impressão de conhecer, tocou a nossa alma, empolgando-nos, fazendo vibrar intensamente o nosso civismo. Ela apelava às mães paulistas que dessem seus filhos para lutarem por São Paulo. E dizia que ela mesma já havia mandado para a revolução seus três filhos em condições de empunhar o fuzil, um dos quais, o mais moço, com apenas 16 anos de idade. Não mandara o quarto filho, porque esse estava ausente do Estado, mas não disse onde se encontrava, talvez temendo represálias contra ele. Como é sublime e inexplicável o coração da mãe paulista! Os filhos que tinha ao seu lado, no aconchego do lar, mandava-os para a trincheira, enquanto procurava resguardar de qualquer perseguição o filho distante. E quando aquela voz feminina calou -se, Cesar Ladeira, com sua dicção admirável, acentuando palavra por palavra, anunciou:
- Acaba de falar ao nosso microfone a senhora dona Jessia Penteado de Salles Teixeira.
Demos um salto do lugar em que nos encontrávamos. Com a voz embargada por soluços que não conseguíamos reprimir, tomado de uma emoção indescritível, gritamos para que todos nos ouvissem:
- É mamãe!
Se uma granada houvesse explodido naquela sala, não teria produzido efeito emocional maior do que o provocado pela nossa exclamação. Todos os presentes, sem distinção de simpatizantes ou não e até mesmo de inimigos do movimento revolucionário paulista, abraçaram-nos comovidos, numa rara e enternecedora manifestação de solidariedade humana. E o rádio paulista, vibrante, entusiasta e entusiasmador, nos dias que se seguiram, continuou a noticiar o que acontecia em São Paulo. Eram os batalhões de voluntários que se organizavam e partiam para a luta. Era o espírito improvisador e dinâmico dos paulistas a prever e prover as necessidades da guerra. Era a campanha do ouro para o bem de São Paulo, que teve a sua apoteose com a doação de alianças dos casais felizes. Era a chegada à Capital paulista do tribuno gaúcho João Neves da Fontoura, anatematizando a traição de Flores da Cunha e conclamando os rio-grandense a aderirem a revolução.
ENTUSIASMO GERAL.
Que um paulista, isolado lá no extremo sul do Brasil, sabendo que seus irmãos, parentes e coestaduanos lutavam heroicamente pela reconstitucionalização do país, estivesse tomado de enorme entusiasmo, era natural. Entretanto, e isso merece reparo, a maioria dos gaúchos estava dominada pelo mesmo sentimento. Quase todos eram solidários com os paulistas. E não se tratava de uma solidariedade platônica. Ao contrario era ativa e atuante. Tal estado de espirito manifestou-se de diferentes modos. Um esquadrão do 7º Regimento da Cavalaria Independente tornou-se suspeito aos ditatoriais. Imediatamente foi mandado contra Itararé, forçado a lutar enquadrado por tropas nortistas. O Comando da 3ª Região Militar determinou o preenchimento dos claros existentes nas guarnições gaúchas, por voluntários reservistas. Incontinente, apresentaram-se reservistas simpatizantes da revolução, com o propósito de, na primeira oportunidade, aderirem ao movimento revolucionário bandeirante. Recordamo-nos, por exemplo, do gesto de Miguel Montana, gaúcho cem por cento – na voz, no físico e nas atitudes - que vendeu seu estabelecimento comercial por qualquer preço, para alistar-se no 7º R.C.I., como sargento reservista, a fim de fazer a revolução. Tramava-se a insurreição por todos os lados. O R.C.I. de Rosário, também estava minado pelas ideias revolucionárias. Um jornalzinho clandestino circulava de mão em mão, incitando o povo gaúcho a honrar os compromissos que o Governador do Estado traíra. Uma pequena tropa se constituiu no Uruguai, improvisada à moda gaúcha, invadiu a fronteira. Estava, porém, praticamente desarmada. Perseguida, encurralada na coxilha de Santana, não fugiu ao “entrevero”, mas foi desbaratada e seus homens aprisionados. Assim, todas as tentativas de levante eram sufocadas, porque faltava um chefe. Mais que tudo, faltava tempo para a indispensável preparação. A vontade de lutar por São Paulo era grande e sincera, porém, não havia armamento e o governo exercia rigorosa vigilância sobre todos.
GOLPE IMPREVISTO.
Não obstante as medidas preventivas e repressivas tomadas pelo General Flores da Cunha, emissários percorriam todo o Estado do Rio Grande do Sul, principalmente a zona fronteira, urdindo e tramando a Revolução. A grande esperança dos gaúchos repousava em dois nomes: Raul Pilla e Borges de Medeiros. Aguardava-se a palavra de ordem desses chefes, para a revolução eclodir em todo o território rio-grandense. Mas eles dois também foram apanhados desprevenidos pelo movimento de 9 de julho e jamais haviam previsto a traição de Flores da Cunha. Não tiveram tempo de se preparar para a luta. Contudo, nem por isso deixaram de lutar. Mobilizaram os homens que puderam. E a fidelidade à palavra empenhada com os políticos de um outro Estado – São Paulo – fez com que os dois tradicionais adversários políticos gaúchos se aliassem no campo de batalha: Borges de Medeiros, o chimango, e Raul Pilla, o maragato; este, o grande “leader” do Partido Libertador, e aquele, a figura exponencial do Partido Republicano Rio-grandense. As tropas ditatoriais perseguiram aquele pequeno, mas valoroso grupo de revolucionários, e superiores em número e armamento, fácil lhes foi envolver e derrotar os bravos homens de Raul Pilla e Borges de Medeiros, prender e exilar os dois grandes chefes gaúchos. Esse, foi o grande golpe desferido contra os que, no Rio Grande do Sul, se preparavam para fazer a revolução.
NOITE DE DESOLAÇÃO.
Na noite de 29 de setembro de 1932, estouraram rojões na porta da Intendência de Santana, ou seja, da Prefeitura local. Os ditatoriais acolhiam festivamente a notícia de que os paulistas haviam firmado o armistício e que a Revolução Constitucionalista chegara ao fim. A desolação que dominou a maioria do povo de Santana do Livramento, foi profunda e comovente. Não lastimavam o fim da guerra entre irmãos, e sim, não terem podido demonstrar com armas nas mãos, a solidariedade do povo gaúcho à revolução dos paulistas. Sentiam-se como que cumplices da traição do General Flores da Cunha. Mas, era um sentimento sem razão de ser. Para salvar as tradições de cavalheirismo, de bravura e de honradez do povo gaúcho, bastavam aqueles três meses de diuturna simpatia pelos paulistas e o gesto magnifico de altivez, desprendimento e coragem de Raul Pilla e Borges de Medeiros, enfrentando as tropas ditatoriais em campo aberto. Os paulistas, senão todos, com segurança aqueles que se encontravam no Rio Grande do Sul, sabiam perfeitamente que o povo gaúcho em quase toda a sua totalidade estivera ao lado de São Paulo que, sozinho, apertado por todas as suas fronteiras, inferiorizado em armas mas superior em ideal, soubera escrever com o sangue de seus filhos a maior epopeia brasileira.
Depoimento do repórter Hugo Penteado Teixeira, publicado em 09 de julho de 1957 no jornal Diário da Noite, edição especial comemorativa.
Editado e publicado por Maria Helena de Toledo Silveira Melo
12/10/2018.
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