“Enquanto houver um coração paulista, Viverás!”
Discurso proferido, no “Clube Piratininga", em 20 de agosto de 1935,
pelo Senhor Cesar Salgado
“Paulo Gonçalves dos Santos ou Paulo Virginio mal sabia ler. Era, porem, inteligente e de boa prosa. No seu apelido não havia nenhuma reminiscência de Bernardin Saint-Pierre e sim do nome paterno de Virginio Gonçalves dos Santos.
Em princípios de julho de 1932, Cunha foi sacudida, na sua pacatez, por graves e inesperados acontecimentos. Mal se comentava ali as primeiras notícias da Revolução Paulista, quando tropas da ditadura irrompem pela cidade desguarnecida e atônita. Era uma coluna mista de fuzileiros navais e soldados do exército. Dado o alarme após o instante surpresa, um grupo de moços reunidos as pressas e mal armados, num gesto de audácia e destemor, investe contra os invasores pondo-os em fuga precipitada.
Rechaçados, os ditatoriais se entrincheiram nas alturas vizinhas, até que na arrancada vitoriosa de 20 de agosto, os Batalhões Paulistas lhes infligem definitiva e espetacular derrota.
Foi nesse intervalo, que os invasores, a míngua de melhores feitos de armas, resolvem aprisionar pacíficos moradores do bairro do Taboão, a duas léguas e meia da cidade de Cunha. Dentre os prisioneiros estava Paulo Virginio. Ele caminhava para o martírio e para a glória. Ia cumprir-se o seu destino heróico. O drama que se inicia tem lances shakspereanos. E a figura daquele humilde caboclo paulista não enaltece apenas a sua terra, mas eleva e dignifica a própria humanidade.
A Paulo Virginio e seus companheiros de infortúnio impuseram logo, contra todas as leis de guerra, o mais rudes trabalhos. Injuriados a cada passo, agredidos, esfomeados, forçavam-nos a abrir trincheiras, carregar pesados blocos de pedra e derrubar árvores e conduzir cargueiros através de léguas e léguas da serrania abrupta.
Por vezes quando algum deles dobrava o corpo exausto as fadigas da jornada, caiam os estribilhos pejorativos como farpas envenenadas de rancor:
-“Paulista, bandido! Rebeldes miseráveis! Raça de estrangeiros! Exploradores do Brasil!”
Paulo Virginio nunca deixava sem réplica os aleives. E chorrilho de insultos repetia sempre:
-“São Paulo vence!”
A sua altivez e obstinação acirravam mais a animosidade dos inimigos. Certo dia, ele foi conduzido à presença do comandante da força ditatorial, o tenente Ayrton Teixeira Ribeiro, que o interrogou:
-“Sei que você é quem melhor conhece o terreno por aqui, as estradas, os caminhos, os atalhos. Escute Paulo Virginio: vou lhe fazer uma proposta de amigo: se você apontar a posição das forças paulistas, terá a liberdade”.
O caboclo ao ouvir essas palavras, fechou os olhos e tremeu num instante de vertigem. De súbito afloram-lhe à lembrança, as figuras bem amadas da mulher e dos filhos. Que seria feito deles? Estariam vivos? Sofreriam fome? E o seu rancho? E a sua roça? E o seu tordilho?
E Paulo julgou distinguir braços súplices que lhe acenavam de longe e vozes queridas a lhe pedir socorro.
A liberdade seria o fim daquele inferno de sobressaltos, de torturas e de ignomínias. Uma palavra sua apenas, e tudo estaria acabado...
Súbito sua feição se transfigurou. Havia no seu olhar o reflexo magnético de uma grande força interior que o subjugava. Ele ia jogar o seu destino num monossílabo.
E, encarando o oficial, respondeu com voz firme e indignada:
- “NÃO!”
O tenente olhou surpreso para o caboclo inerme e debilitado, que o afrontava com o desassombro daquela negativa heróica.
-“Ah você não quer, não é ? “ “ Pois havemos de conversar logo mais. Sargento, tome conta desse homem”.
O sargento, Juvenal Bezerra Monteiro, avança ao encontro de Paulo Virginio e o empurra aos trancos e safanões até o recesso de um pequeno bosque. Arranca-lhe a camisa, e atam-lhe as mãos às costas e o suplício dantesco se inicia.
-“Então, seu paulista salafrário, você não quer dizer onde estão os rebeldes? Pois vai ver como se faz um homem falar. Tome lá, miserável!”
E a chibata estalou no dorso do prisioneiro entre o riso e a chacota dos algozes que se revezavam no manejo do aviltante instrumento.
Nos lábios de Paulo Virginio, nem um gemido, nem uma queixa, nenhuma imprecação. A cada golpe, incoercível, ritos de dor vinca-lhe o semblante. Nos seus olhos uma chama de ódio e de desprezo, ante a miséria moral dos bárbaros que o torturavam. Já, agora as forças lhe fugiam. Vergavam-se-lhe as pernas. E ele caia de borco, empapado de suor e de sangue.
Arrastam-no até junto de uma árvore: dão-lhe pontaços como estimulante para chama-lo à vida. Paulo Virginio ergue-se trôpego, o dorso zebrado de listões escarlates.
-“Fala bandido!”
O caboclo paulista, acuado pela matilha feroz, recostou-se ao tronco, aprumou a cabeça em assomo titânico de desafio e exclamou:
-“São Paulo vence!”
A impávida insolência daquele matuto indefeso e martirizado arrancava explosões vituperantes de rancor da boca dos seus verdugos. Na embriaguez sanguinária que os alucinava, eles se sentiam desacatados entre as suas baionetas, os seus fuzis e as suas metralhadoras pela energia indomável de um pobre diabo, que sozinho lhes afrontava as iras, as ameaças e os tormentos. Era demais. Aquilo já parecia ofensa aos seus brios... O paulista havia de pedir misericórdia mesmo que fosse a poder de água fervente.
-“Toma lá, caboclo dos diabos”.
E atiram-lhe ao peito e às costas, baldes de água em ebulição,” que até levantava fumaça”, no linguajar, expressivo de uma testemunha do nefando atentado. Depois uma ducha bem fria – era manhã de geada- na bica do monjolo.
Paulo Virginio assemelhava-se a um farrapo humano. No corpo lanhado e requeimado a epiderme empolava-se em borbulhas sanguinolentas. As pernas trôpegas, mal se arrastavam no caminho pedregoso. Só os olhos não haviam perdido o estranho fulgor que os animava.
Foi assim que o reconduziram à presença do tenente Ayrton.
-“Então, está disposto a falar ?Vamos, onde estão os paulistas?“
Paulo Virginio num apelo supremo às sua derradeiras energias, avançou para o oficial e gritou-lhe face a face:
-“Não digo! São Paulo vence!”
-“Ah, não diz? Está abusando de minha paciência? Pois você vai morrer. Sargento fuzile esse homem”.
Foi junto à ponte da estrada do “Divino Mestre” que se consumou o cruel exicio. Ali, lhe entregam a enxada para cavar a própria sepultura. Era no dia 28 de julho de 1932, pela manhã, entre seis e sete horas.
Cada vez que a lâmina de ferro acionada pelas mãos débeis do condenado caia sobre o solo, parecia exalar-se doloroso gemido do ventre maternal da terra, que se abria para receber o filho, herói e mártir sacrificado por ela, em holocausto supremo.
Que custo para se profundar a cova! Se o chão ouvisse a suplica de Paulo Virginio, ele se fenderia logo para abreviar-lhe o cruciante martírio.
-“Vamos acabar com isso. Ande! Parece que está com medo de morrer, paulista amaldiçoado!”
Paulo Virginio deixou cair a enxada e voltando-se para a escolta exclamou em derradeira e patética afirmação de heroísmo, de fé e de lealdade à sua terra:
-“Morro, mas a minha morte será vingada. São Paulo vence!”
Uma rajada de metralhadora. A queda de um corpo. E a tragédia estava consumada...
O humilde caboclo do bairro do Taboão tombava com dezoito tiros pelas costas.
-“Eta sujeito renitente. Até depois de morto ainda está de cabeça erguida...”
E ouviram-se pancadas surdas de coronha de fuzil no crânio da vitima...”
***
“Paulo Virginio, mártir da nossa fé, nós compreendemos a grandeza do seu sacrifício. És o símbolo heróico da raça. Caíste para te levantar na imortalidade.
Descansa bravo lidador. Um dia será vingado! Aquele estribilho profético, que repetias diante da dor e da morte, há de se concretizar amanhã, na arrancada triunfal de um povo que marcha para altos destinos. E ergueremos, então, a tua imagem sobre os escudos, para guiar os nossos passos e estimular a nossa virtude.
Descansa, Paulo Virginio. Viverás, eternamente, na lembrança e no culto de um povo, porque enquanto houver um coração paulista, viverás!”
Referência
Montenegro, B; Weisshon, A. A. (Org.) Cruzes Paulistas: os que tombaram em 1932 pela glória de servir São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1936. 516p.
Notícia sobre a remoção dos restos mortais dos imolados a 23 de maio para O Mausoléu no Ibirapuera. Os quatro mártires MMDC e Paulo Virginio.
Recorte jornal - Gazeta São Paulo 06 - 07 - 1955.
(Arquivo particular)